PREFÁCIO
Antes de abordar este livro
de Moisés Menezes, propriamente dito, cumpre-me externar três observações. As
quais, aliás, são fundadas em opiniões muito pessoais, mas que alcançam a
opinião comum de muitos outros nessa diversidade imensa que é o país em que
vivemos. Diversidade que, por vezes, leva-nos a imaginar que qualquer equívoco
cultural esteja enraizado em nós mesmos. Não nos outros. Uma dessas
observações, por exemplo, diz respeito à cultura que nos identifica e nos
caracteriza como um agregado humano específico. Outra que se refere a determinados
gostos que definem nossas predileções por arte, literatura, cinema, música,
teatro e assim por diante. Outra, ainda, relacionada ao modo como lidamos com
tudo isso.
Os elementos que definem
nossa identidade cultural passam, necessariamente, por insondáveis conteúdos
por vezes quase indecifráveis para a maioria da população. Pois, afinal, um
país com estas dimensões, recheado de costumes diferentes, formado em múltiplas
circunstâncias históricas, dificilmente pode ensejar uma compreensão linear de
tudo que se acumulou ao longo do tempo. Afora esse problema, um outro,
relacionado com a tão conhecida desigualdade social. Pois, foi nessa
desigualdade que se formou uma elite, que considera não apenas a condição
social dos diferentes estamentos, mas também aquilo a que poderíamos denominar
de “gosto pelas coisas”.
Um abismo imenso se formou a partir do gosto,
que coloca uns em determinada alçada, outros em outra. Isto é, objetos de
gosto de uns, muitas vezes é objeto de “não gosto” de outros. Uma situação que
revela, seja no mundo inteligente das academias e dos salões frequentados com
glamour e sofisticação, seja no mundo comum das pessoas que não se preocupam
com aquilo a que se denominaria “protocolo estético”, desnível de incontornável
reparação. Não é fácil lidar com esta questão. Porque o que alguns
apreciam, outros não. Mas o fato dessa
diferença de gosto interpõe uma abjurada condição de mais desigualdade.
Talvez poucos conheçam o
nome do biógrafo de Emílio de Menezes, Campos Sales e José de Alencar, o
saudoso escritor Raimundo Álvaro de Menezes, antigo presidente da União
Brasileira de Escritores. Em minha juventude eu passei alguns anos datilografando
(que era como se falava, então) originais de algumas de suas mais importantes
obras. No momento em que ele organizava o grande Dicionário Literário
Brasileiro, depois de determinar o formato dos verbetes, passou-me centenas de
folhas com nomes de autores importantes e conhecidos, recomendando que o tratamento
para todos deveria ser igual, variando apenas a ordem de entrada de cada um
segundo a ordem alfabética dos respectivos nomes.
Com o passar do tempo,
a obra engrossando e os nomes sendo acrescentados na medida em que eram localizadas
obras nem tão conhecidas, entregou-me quase um milhar daqueles que viriam a se
converter em pequenos, quase minúsculos verbetes. Quando levei de volta a série
acabada desses novos autores, depois de ler todos os textos, apanhou uma caneta
esferográfica vermelha e suprimiu de algumas dezenas de verbetes a palavrinha
que eu acrescentara à definição biográfica de cada um. Inúmeros desses autores
eram poetas com obras publicadas pelo interior, principalmente, de Goiás a São
Paulo, de Minas Gerais ao Rio Grande do Sul, de Mato Grosso ao Amazonas.
Virou-se para mim e disse: “são todos poetas, não existe poeta regional, que é
uma invenção da crítica; pois poesia é uma só, gênero literário de qualquer
grandeza, que consagra o autor pela obra e não pelo lugar de onde vem, ou de
onde fala”.
Aprendi a lição para a vida.
A apresentação desta obra de Moisés Menezes, como não seria de supor
diferente, envolve as relações entre aquilo que uma crítica constituída já
deliberou inserir nas estantes principais da literatura, como aquela outra
obra, por vezes despretensiosa, mas
que contém em si uma importância inesperada.
Seja pelos ecos que ressoarão no futuro uma lírica de resgate de nossos mais sagrados
valores, seja pela evocação presente de feitos no passado, dos quais não
poderemos nos apartar. Pois, afinal, somos o que somos, porque viemos de onde
viemos. Nada nem ninguém pode modificar essa circunstância, que é histórica e
cultural.
Moisés Menezes é autor
de obra vasta. Pode-se mesmo dizer que ele é, antes de tudo, um intelectual,
um recuperador e um artista. Intelectual que reflete e faz refletir sobre a
origem de todos nós. Uma origem que só será valorizada no contexto de outras
culturas, na medida em que saibamos inseri-la no acervo da Civilização. Para
tanto, dependemos da capacidade criativa de intelectuais como ele. Razão pela
qual, como autor ele é um recuperador. Recupera por meio da literatura que cria
a cenas e o cenário por onde transitaram os atores dessa representação da qual
resultamos.
Nesse itinerário criativo
ele se revela artista, pois reconstrói a partir de sua literatura lírica a
inefável poesia dos descampados, das pradarias, dos fogos de chão, das trovas
e, principalmente, dos sonhares que a idade acaba arrebatando e no lugar
deposita o sentimento de uma “gauchidade” que existe, ou existiu, à mercê de
um tempo transformado.
Brindo ao poeta Moisés Menezes com uma de
suas próprias estrofes: “O tempo o vai / esculpindo / sem olvidar velhas
crenças / e um guerreiro libertário / vai-se forjando ‘al despacio’ / no
contraponto dos dias”.
Victor Aquino *
* Gaúcho de Tupanciretã. Doutor em
ciências. Professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade
de São Paulo, da qual foi diretor entre 1997 e 2001. Presidente da ABECOM
(Associação Brasileira de Escolas de Comunicação) entre 1999 e 2002. Fundador e
primeiro presidente da FUNDAC (Fundação para o Desenvolvimento das Artes e da
Comunicação) e i-DN (Instituto Dona Neta) mantenedor do Instituto da Moda e
INMOD France. Autor de 84 obras, a maioria disponível para leitura em www.victoraquino.com.
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