Os Abas Largas
(*)Moisés
Silveira de Menezes
Ao
final dos prazerosos e inquietantes oitenta e três minutos dedicados a assistir
o filme “Os Abas Largas”, nos
deparamos com a célebre, velha, sempre atual e insofismável afirmação de Oscar Wilde:
"A vida imita a arte muito mais do que a arte imita
a vida."
Não vamos nos aprofundar nessa sentença porque ficaríamos dias e noitesenvolvidos
com situações que ora ilustram que a vida imita a arte e ora demonstram o contrário,
mas no filme em questão nos deparamos com as duas assertivas dependendo do
ângulo que se analisa.
A frase de Wilde imbrica
também na discussão sobre ficção e realidade que permeia qualquer análise que
se queira fazer quando se comenta a arte nas suas mais variadas manifestações e,
no momento, me vem à memória a resposta que me deu Victor Aquino, professor da
Escola de Comunicação e Arte da Universidade de São Paulo, a um questionamento
que lhe fiz:
“-Toda realidade é
fantástica. A fantasia, muitas vezes, também é real. Importante é a descrição.
Embora fato real utilizado em texto ficcional, ou vice-versa, tudo pode derivar
em dúvida. Exemplos: primeira missa na Ilha de Santa Cruz, os escritos na areia
do padre Anchieta, o amor de Marília por Dirceu, a execução de Tiradentes, o
papel de Garibaldi na guerra dos dez anos (ou guerra do charque, ou guerra
contra o império), a descrição de qualquer herói (seja na Grécia clássica, seja
na guerra do Paraguai) e assim por diante. Enquanto isso, a dúvida, que nem
sempre é dúvida, mas o desalinho entre tudo que é real e alguma coisa que é
ficção, muitas vezes pode remeter ao mito ou a uma elaboração mitológica.
Contudo, o que importa, mesmo, é a inteligência de quem escreve de quem dispõe
do mando da autoria domesmo, é a inteligência de quem escreve de quem dispõe do
mando da autoria do que se cria em literatura.”
Na senda dessas assertivas, o filme
tem cenas que nada mais são do que o transpasse para a tela do dia a dia do Regimento
de Polícia Rural Montada: despachos do comandante, formaturas, expulsão de um
integrante que comprovadamente aderira ao crime, também com alguns integrantes
do Regimento desempenhando seu próprio papel ou sua própria atividade em seu
cenário de rotina, como o caso do próprio comandante da unidade e alguns
auxiliares diretos, confirmando o que disseram Oscar Wilde e Victor Aquino há
uma dose de ficção,um pouco de arte e assim nos
parece que a vida se vale ,reproduz ou imita pelo menos em parte esse contexto
ficção\realidade.
Por outro lado, os atores encarnam com tal originalidade,
espontaneidade e doação seus papéis que, ao
observador mais desavisado, será muito difícil saber quem é integrante do
Regimento no exercício de sua atividade, fazendo seu próprio papel, e quem,
ator por excelência, está corporificando uma personagem e, entre muitos, cito o
ator e poeta Dimas Costa irrepreensível na construção da personagem Sgt.Nicácio
que, transitando entre um ser divertido,
bonachão e profissional, nos lembra muito os
velhos “rurais” que conhecemos, haja vista a convivência muito próxima que
tivemos com a legendária “rural montada”, por ser filho de um desses abnegados
que fizeram história pelos fundões do Rio Grande e,
bem mais tarde, por ter tido a honra de comandar a renomada
unidade, no entanto renomeada com a supressão da palavra “rural”
Ao analisarmos um filme
devemos ter em mente que
esse não é um
texto, mas se
compõe de vários textos simultâneos representados pelo roteiro (muitas
vezes considerado como o único texto de um filme), pela iluminação, pelo
guarda-roupa, pela trilha sonora e a fotografia. Da maior ou menor capacidade
de tais múltiplos textos conversarem coerentemente entre si dependem de maneira
significativa a beleza e harmonia do filme. Nesse sentido, qualquer trabalho
com o cinema exige a observação detalhada de todos esses textos superpostos e
simultâneos, ultrapassando em muito a análise do roteiro expresso nas falas dos
personagens em cena.
Um
enredo romântico, com belas atrizes e indefectíveis mocinhos, tudo muito fiel
ao gosto da época, permeia de forma subjacente o conflito principal que
reproduz a eterna e universal luta do bem contra o mal,do justiceiro honrado no
combate ao crime.O filme se completa nesses dois aspectos do enredo com um
agradável desenvolvimento e com muita qualidade,principalmente se levarmos em
conta a época com as visíveis dificuldades para levar-se a cabo um empreendimento
de envergadura em uma arte que havia começado a pouco mais de cinquenta anos, na Europa, e que
ainda engatinhava na terra da pampa larga.
“Os Abas
Largas” foi apresentado à época como o primeiro far west brasileiro porque se
insere no contexto da vida rural rio-grandense bastante similar ao oeste
americano.Por lá e aqui, nos pagos em torno da lida e dos negócios gerados
pelo boi e o cavalo, criou-se alguns tipos sociais únicos e bem definidos:peões,tropeiros,fazendeiros,domadores, ladrões de gado,receptadores(esses dois últimos
popularizados pela expressão “abigeatário”).Na realidade,a obra é bem mais que
um simples far west brasileiro,pois reproduz, com arte, a vida do interior do estado nos anos 50-60,com seus
conflitos,seus encantos, suas peculiaridades,suas belezas e suas tristezas.Além
disso fica bem visível que a obra possui um ótimo diálogo entre seus variados
textos com destaque especial para
roteiro,fotografia e figurino.
Se o estereótipo
do gaúcho, lidador, campeiro, criador de gado não rivaliza com o vigor, com a
miticidade, com o ar
lendário de um personagem de Hernandez, de Sarmiento ou de Güiraldes, provavelmente porque a nossa literatura não tenha criado
nada que se aproxime de Martim Fierro, Dom
Segundo Sombra ou Facundo,no
entanto, na tela, desfilam gaúchos desmistificados,em carne e osso,com
virtudes e defeitos e por isso humanos.Uns
envergando a farda da recém criada Rural Montada,menina dos olhos da Brigada
Militar, junto com os Pedro e Paulo(os Rurais
para o interior do estado,e os Pedro e Paulo
para a área urbana), e outros, ainda, na
labuta diária da vida de campo,o pastoreio,a tropa e suas decorrências,
peculiaridades e singularidades e é nessa reprodução do gaúcho daquele momento
histórico,pois, a obra não vai ao passado mítico,que a arte mais se aproxima da
vida e vice versa.
Existe
uma linha muito tênue que separa o bem e o mal, o certo do errado, a polícia do
mundo do crime. Cruzar essa linha não é tão difícil quanto se pensa. Quando o
bem, representado pelo agente da lei ultrapassa essa linha, a sociedade passa a não ter parâmetros e, ao lembrarmos-nos
do livro do Gênesis, a polícia pode ser interpretada como criação de Deus, pois,
a figura anjo com a espada flamejante de
certa forma representa uma primitiva idéia de policial.
No
filme que ora se comenta, esse conflito antagônico se desenvolve em primeiro
plano com o agravante de que um rural também ultrapassa essa invisível
fronteira e apresenta uma faceta que é real até os nossos dias, qual seja,um
chefe da quadrilha,bandoleiro que não se encaixa no conceito do desajustado
social,do homem criado à margem da sociedade e por isso já em conflito com essa
desde o nascimento.O abigeatário chefe,receptador, é fazendeiro e
doutor,cidadão, a princípio, livre de quaisquer suspeitas, com álibis naturais
que a posição social concede e com isso bem difícil e complexa se torna a ação
da lei para a comprovação do crime e da consequente punição.
Esse fato
de relevância no enredo, me lembra uma cena, lá
dos anos 60, quando meu pai e outro companheiro do 1º R.P.R. Mont.,a popular Rural
Montada, investigando um roubo de gado acabou,
ao final de
vários dias de trabalho árduo e competente,
prendendo o mandante do roubo,figura bem conhecida na localidade,com futuro
político pela frente e de imagem irretorquível até aquela data (meados da
década de 60).Quando chegaram na delegacia de polícia com o preso,o delegado
saiu pela porta dos fundos e não voltou para o flagrante,tal a importância do
preso no cenário local.O jeito foi aproveitar a abnegação e o desassombro de um
escrivão de polícia e montar o flagrante fora da delegacia e depois levar o
culpado e a documentação para um delegado conhecido de Santa Maria que fez a
autuação.
Importante
destacar, no filme, a punição do rural que trocou de lado - de agente da lei para criminoso-, pois essa forma de agir, sem corporativismo,
sem protecionismo, rápida, justa e adequada à falta cometida, fez da Brigada
Militar uma referência quando se trata de segurança pública e do permanente e
acurado cuidado com a honradez e
dignidade de seus quadros,com a ressalva que, na atualidade, apenas houve uma adaptação às modificações da legislação
penal com maior abrangência no que concerne aos direitos de ampla defesa ao
faltoso.
O Rio Grande do Sul, pela
faina do gado e suas derivações como atividade econômica principal, possibilitou
o surgimento e abrigou os mais diversos personagens, entre matreiros,
bandoleiros ou simples gaudérios. Esses tipos sociais sobreviveram ao tempo, permaneceram
na literatura oral e no imaginário popular, que lhes acrescentou colorido de lenda
e aura sobrenatural. Além disso, ficaram
projetados no tempo, a espera de alguém que, um dia, os resgatassem para
perpetuação e estudo de tipos sociais que vão desaparecendo.
Assim, figuras como Talco Cardoso, Ranchão,
Martim Aquino e Locatelli, entre outros, resgatados na obra “Os Últimos
Bandoleiros a Cavalo”, de Sejanes Dorneles, também não deixam de estar
presentes no filme “Os Abas Largas”,no plano metafórico,embora a falta de uma
cena de impacto,verídica, como aquela protagonizada por Talco Cardoso logo que
saiu da cadeia do gasômetro em Porto Alegre narrada por Celito de Grandi:
“... Comprou passagem no
luxuoso “Minuano” e, ao chegar próximo à parada Inhatiun, para não descer em
São Gabriel, temeroso de alguma cilada, obrigou o chefe do trem a brecá-lo nos
trilhos, sob a mira de um revólver e o olhar espantado dos passageiros.Ali o
esperavam os comparsas,com um cavalo encilhado...”
Mesmo sem a presença dessa cena,
real, quase irreal de tão real, o filme registra uma época importante no nosso
processo histórico, pois, o campo bem mais que um modo de vida, tornou-se uma
das principais atividades da nossa economia e que sobremaneira, colaborou com a
mitificação do gaúcho e sua consequente permanência, com as nuances
características que o tempo e o imaginário popular concedem àqueles ou àquilo
que resiste ao primeiro e que, por alguma razão ainda não bem definida, caem no
agrado e no gosto do segundo.
Também se faz importante registrar
que a obra cinematográfica pereniza e faz jus a uma das mais históricas unidades da Brigada Militar em um novo momento de sua
brilhante caminhada. Trajetória iniciada em 93, no rastro dos Federalistas de
Joca Tavares e Gomercindo Saraiva e, ensarilhando as armas, principiava a odisseia
do policiamento ostensivo, levando paz e tranquilidade aos fundos de campo, nos
grotões esquecidos, com missões que a tornariam pioneira do que, hoje, se define
como Polícia Comunitária e Polícia Ambiental, quais sejam:
- a vigilância preventiva e as primeiras
providências de caráter repressivo no interior dos municípios, em colaboração
com a autoridade policial;
- execução de atividades educativas, advertindo
e orientando, no cumprimento da legislação vigente;
- visitas periódicas a lugares remotos para
entrega de correspondência e prestação de serviços assistenciais;
- auxílio a moradores de regiões mais isoladas,
em caso de acidente ou moléstia;
- solicitação de médicos ou medicamentos, pelo
rádio ou outros meios de comunicação;
- condução dos médicos, enfermeiros, parteiras,
veterinários ou medicamentos para regiões de difícil acesso, em caso de
necessidade;
- aviso às autoridades sanitárias em caso de
epidemia, colaborando quando requisitado;
- assistência e auxílio à população flagelada,
em caso de calamidade pública;
- medidas preventivas contra o fogo e combate a
incêndios em matas;
- auxílio nos serviços florestal, caça e pesca
de estatística e de proteção aos índios.
(*)Cel RR da Brigada Militar
Graduado em Letras-Português-Espanhol
Bibliografia
-Aquino, Victor Prof. Entrevista
virtual,facebook,2014.
-De Grandi, Celito.Jornal Zero Hora, domingo,15 de julho de2012.
-Güiraldes, Ricardo.Don Segundo
Sombra, segunda edición, San Antonio de
Areco, Proa, 1926.
-Hernandez, Jose. El
Gaucho Martim Fierro, primera edición,
Buenos Aires, Imprenta de La Pampa, Victoria 79, 1872.
-Mariante, HélioMoro.Crônicas da Brigada Militar,Imprensa
Oficial Editora,1972.
-Pereira, Maj Miguel. Esboço Histórico de a Brigada Militar,
Oficinas Gráficas da Brigada Militar, 1950.
-Sarmiento, Domingos Faustino. Facundo ou Civilização e Barbárie, tradução
Sérgio Alcides, Cosac Naify, 2010.
-Dorneles, Sejanes. Os Últimos Bandoleiros a Cavalo. Editora da UCS. 2001
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